ALTAMIRO CARRILHO
Por Fabio Gomes
Entrevista gravada em São Leopoldo (RS), em 25 de agosto de 2003
FABIO GOMES - O senhor tem tocando bastante
repertório erudito, em apresentações com orquestras, não
é?
ALTAMIRO CARRILHO - Estamos tocando não só
música erudita como popular também, mas um popular mais tranqüilo,
mais suave, de modo que combina muito bem com o erudito.
F -
A sua carreira já tá numa fase que não tem mais essa questão
"ah, agora estou fazendo música erudita", "agora estou fazendo
música popular". Tem muita gente que tem medo de integrar as coisas.
A
- Eu não acho diferença nenhuma. A música é uma só.
Só existe um tipo de música: é a boa. Eu viajo o Brasil inteiro,
fora do Brasil também já fiz grandes temporadas. Fiz durante 12
anos a caravana oficial do governo, divulgando a música brasileira no exterior,
e conheci 40 e tantos países com música. Cada viagem nós
atendíamos 4, 5 países diferentes e foi o grande passo que a música
popular deu, foi por intermédio da lei de Humberto Teixeira, parceiro de
Luiz Gonzaga, quando deputado federal (1958). E essa lei foi fantástica,
porque não gastava muito, eles aproveitavam a bilheteria do próprio
país em que estávamos para cumprir parte das despesas. Sempre teatros
lotados. Na antiga União Soviética (1966), nós fomos
para fazer 30 dias e ficamos 90 dias. Renovamos o contrato duas vezes, o que poucos
estrangeiros conseguiram na Rússia. Pela nossa riqueza de ritmos. O Brasil
é o país mais rico em ritmos no mundo inteiro.
F
- Essas viagens, isso aí já foi com a Bandinha?
A
- Não.
F - Não?
A - A Bandinha,
nós viajamos somente pela América Latina. Porque a Bandinha tinha
9 componentes e onerava muito. Esse outro grupo era um grupo pequeno, era um quarteto,
no máximo um quinteto, o que trazia uma despesa muito menor. Mas um quinteto
escolhido assim a dedo. Músicos escolhidos com um cuidado assim...
F
- Quem eram?
A - ... todo especial, música instrumental... Eram músicos do Teatro Municipal, aqueles músicos da Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, músicos de São Paulo, da orquestra do Paes, Luís Arruda Paes. Bons músicos. Então mesclávamos, 2 do Rio, 3 de São Paulo, 1 de Minas, pra representar o Brasil, né? E o sucesso foi enorme, porque nós tocávamos 90% de música instrumental. Sem barreiras de idioma. O idioma é uma barreira enorme fora do Brasil. Pouquíssimos países falam português. Então ficamos absolutamente convencidos, depois da primeira caravana, que era o instrumental que agradava mais. Agora levamos sempre músicos de primeiríssima categoria, em saxofone, trumpete, trombone, flauta, acordeom, piano, bandolim, tudo da melhor qualidade, né? Então um grupo pequeno fazia as vezes de um grupo grande, porque cada um tocava mais de um instrumento. O pianista tocava acordeom, vibrafone; o contrabaixista tocava tuba e contrabaixo; formávamos uma pequena bandinha também - não fomos com a Bandinha completa, mas pelo menos um instrumento da banda tinha, que era a flauta, e mais a tuba. E íamos sempre com um cantor ou uma cantora bons. Naquela época, estava fazendo muito sucesso a Carmélia Alves, que era considerada a rainha do baião - era Luiz Gonzaga (rei do baião) e Carmélia Alves. Mas Luiz Gonzaga tava trabalhando muito no Brasil, não quis ir à Europa. As músicas foram por ele, os discos foram. E Carmélia Alves foi a primeira, depois foi a Isaurinha Garcia, grande sambista, depois foi Elis Regina... Elis Regina chegou a ir numa das últimas caravanas. Com todo o sucesso que ela conseguia no Brasil, lá ela perdia para meus instrumentistas. Por causa do idioma. Agora, instrumental era sempre sucesso garantido.
F
- Eu tenho uma curiosidade, como estudioso e apreciador do choro, porque em 1951,
quatro músicos do Regional de Benedito Lacerda fundam o Regional do Canhoto:
Canhoto (cavaquinho), Dino (violão de 7), Meira (violão)
e Gílson (pandeiro). A princípio, oficialmente, durante muito
tempo circulou que Benedito Lacerda queria se aposentar e então se retirou
do conjunto e Canhoto assumiu com o nome, embora não passasse a ser o solista...
A
- É, porque o Canhoto era o mais antigo do conjunto.
F
- Eu fiquei sabendo (outra versão) há pouco tempo atrás
num livro sobre Jacob do Bandolim (Tributo a Jacob do Bandolim - Discografia
Completa, de Maria Vicencia Pugliesi e Sergio Prata, Rio de Janeiro: Centro Cultural
Antonio Carlos Carvalho, 2002): na verdade os músicos é que
não quiseram mais trabalhar com Benedito, que tava muito famoso, com avião
particular, só querendo aproveitar a vida, viajar, não queria ficar
mais tocando e tal. E aí, no caso, lhe convidaram para ser o flautista.
Qual é a versão correta?
A - Não, aí essa versão eu não concordo. Porque o Benedito Lacerda fez uma amizade muito forte com o saudoso Ademar de Barros, que tentou a presidência da República várias vezes. Então Ademar de Barros queria que o Benedito Lacerda, como bom flautista que era, e que tinha um gênero de música muito alegre, que é o choro, (auxiliasse na campanha), essa coisa toda. O Ademar de Barros colocou à disposição dele um jatinho, com piloto, para ele ir onde quisesse, e nesses lugares estaria também Ademar de Barros fazendo sua campanha. (OBS: Em 1950, Ademar de Barros concorreu a senador pelo PSP de São Paulo, apoiando a chapa presidencial do PTB: Getúlio Vargas e Café Filho). Acontece que o Benedito Lacerda, nessa época, já estava doente, já estava com câncer no pulmão. Ninguém sabia. Ele sabia porque o médico falou e recomendou a ele que tocasse o instrumento o mínimo possível, porque dependia da respiração, certo? E além de tudo, Benedito fumava muito, nunca parou de fumar e com isso prejudicou mais, quer dizer, não deu chance ao organismo de reagir. Ele não queria abandonar o conjunto completamente, aproveitou essa oportunidade pra viajar pelo Brasil. Ele ia só prestigiar Ademar de Barros. O secretário do Ademar apresentava: "Aqui o grande músico brasileiro Benedito Lacerda, já gravou com todos os maiores cantores do mundo", e tal. Aí ele tocava com um pequeno trio, improvisado no Rio, e que foi pra lá porque o Canhoto gravava muito. Dino, Meira e Canhoto gravavam muito, eram o trio preferido dos cantores, com o Benedito, mas como o Benedito estava viajando... Houve uma resolução de consenso, os quatro componentes do grupo disseram: "Nós precisamos trabalhar mais, caiu o nosso nível de trabalho com a ausência do Benedito". Aí resolveram, então, quem assumiria o grupo? O Dino disse:
- Eu não, eu não posso, não quero liderar nada.
E aí o Meira também disse:
- Olha, eu também não. Aqui já está resolvido, é o Canhoto, porque eu não topo, você não topa, Dino, tem que ser o Canhoto.
Aí o Canhoto disse:
- E quem disse que eu topo? Eu também tenho que estudar um pouco essa situação. Eu não quero magoar nosso diretor, nosso amigo, seu Benedito.
Aí conversaram com o Benedito, o Benedito disse:
- Olha, vocês podem formar um novo conjunto, e eu tenho uma indicação pra fazer. Tem um garoto aí tocando flauta muito bem...
Antes que ele acabasse, o Meira disse:
- É Altamiro Carrilho.
- É. É ele mesmo, é o Carrilho. Esse menino vocês podem chamar sem susto que ele vai me substituir muito bem, toca meu repertório, toca tudo o que puser na frente, lê música, faz arranjos, tudo - com essa idade, você imagina.
Aquela coisa,
o Benedito era muito expansivo e tinha uma simpatia assim por mim. Aí os
três foram lá - Dino, Meira e Canhoto - me procurar pra conversar.
Eu estava com meu grupo recém-formado na Rádio Guanabara, havia
saído do Regional de Rogério Guimarães, que atuava na Rádio
Tupi, Rádio Tamoio...
F - Que também era canhoto!
A
- Também era canhoto. Rogério Guimarães. Aí eles chegaram
na rádio, eu estava na hora de fazer o meu ensaio, falei com os companheiros
que esperassem um pouco, que eu ia conversar com eles, e ao terminar a conversa
ficou certo que eu iria trabalhar com eles. Porque o conjunto estava recém-formado,
e a rádio também estava com uma programação nova,
então o meu conjunto só tinha um solo por semana. Só meia
hora de solo. Então consegui um clarinetista muito bom, da Orquestra de
Napoleão Tavares, e coloquei no meu lugar. Hoje está vivendo em
São Paulo, o Portinho. Chorão. Aí o Luiz Gonzaga sugeriu
ao Canhoto que colocasse um acordeom no conjunto. Nessa altura, veio o Orlando
Silveira pra fazer um teste no conjunto, passou no teste. Então a coisa
foi assim. Eu depois resolvi voltar com meu próprio conjunto, porque eu
formei uma bandinha (em 1955) e a Bandinha estava aparecendo mais que o
Regional do Canhoto.
F - Durante um tempo (1955 - 1957)
o senhor jogou nas duas, né?
A - Joguei nas duas, mas
não deu. Chegou a um ponto em que eu não podia atender aos dois
lados. Começou a aparecer muito trabalho pra Bandinha, por causa da televisão,
eu tinha um programa (Em Tempo de Música) num horário nobre,
aos sábados, sete e meia às oito da noite, antes do Repórter
Esso...
F - TV Tupi.
A - Imagina, antes
do (que seria o) Jornal Nacional hoje... Conclusão, aí
a Bandinha estava desgastando mais o meu tempo do que o conjunto. E o Canhoto,
claro, não estava gostando muito da coisa. Então propus a eles eu
mesmo arranjar um bom flautista para ficar no meu lugar, e eu ficaria só
com a Bandinha, pelo menos provisoriamente, enquanto tinha aquele programa na
televisão. Eu sabia que aquilo não ia durar sempre. Canhoto aceitou,
assim, muito aborrecido, mas aceitou. E eu consegui então o Carlos Poyares,
que tem um ouvido muito bom, andava tocando lá com um conjuntinho chué,
lá, das 11 da noite às 5 da manhã pra sobreviver... Pra ele,
Poyares, foi muito bom, e pro conjunto também, porque ele, como acompanhador,
era muito bom. Não era assim um solista de primeira, mas tinha um ouvido
bom e fazia as introduções certinhas. Então era isso que
o Canhoto queria, que o Regional do Canhoto na verdade só fazia uns solinhos
de vez em quando, esporadicamente. No mais, o forte mesmo era o acompanhamento.
E isso o Poyares fazia bem. Então, resolveu.
F - Nessa
fase da sua atuação no Regional do Canhoto, o senhor deve ter acompanhado
muito então o Sílvio Caldas e o Jacob do Bandolim.
A
- É, se bem que Jacob do Bandolim preferia um grupo que ele mesmo organizava
pra gravar. Ensaiavam semanas e semanas e semanas, ele preferia. Porque o conjunto
do Canhoto era muito ocupado em atender outros artistas, em gravar com Orlando
Silva, Sílvio Caldas, Francisco Alves, Augusto Calheiros, Nelson Gonçalves,
todos gravavam com a gente.
F - Quando Jacob foi pra RCA, a RCA
deixou ele um tempo com o regional próprio dele. Aí depois ele gravava
com o Canhoto.
A - Exato. Já na Continental ele, antes
de ir pra RCA, na Continental ele gravava com o grupo dele.
F
- Isso.
A - Jessé (violão), Pingüim
(cavaquinho), Fernando Ribeiro (violão), enfim, aquela turma.
Depois foi o César Faria (violão), também fazia dupla
com o Fernando, quando não era o Jessé, era o César Faria,
pai do Paulinho da Viola. E também tocava no meu grupo na Rádio
Guanabara, olha o detalhe.
F - Bom, peraí, ele tocou
com o Dante Santoro...
A - É, ele tocou com muita gente
no Rio. Ele até hoje é muito querido no meio. Então essas
coisas de conjunto mudavam, um saía de um conjunto, ia pro outro e tal,
e comigo aconteceu o mesmo, toquei com Ademar Nunes (1946), toquei com
César Moreno (1947), toquei com Piranha (Edvar de Almeida Pires),
um violonista que tinha esse apelido por causa dos dentes separadinhos, e com
o Rogério Guimarães (1948-50), que era considerado o regional
mais forte depois do Benedito Lacerda. Em primeiro lugar, Benedito, nunca ninguém
superou, ninguém. O Canhoto ficou mais ou menos equilibrado com o Benedito
porque, além da minha presença, tinha o Orlando Silveira que era
muito bom! Fazia uns duetos comigo, nós bolávamos uns arranjinhos,
é, foi uma fase muito boa.
F - Atualmente o seu repertório
está estruturado em três pontos: clássicos do choro, as suas
composições e clássicos da música erudita.
A
- É, clássicos EM choro. É um resumo dos trechos mais conhecidos,
porque não seria possível tocar sem aquela percussão grande,
sem os baixos, os tímpanos...
F - Contrafagotes...
A - É, exatamente, sem o "corpo", digamos assim. Mas uma idéia a gente dá ao público, daquilo que aparece mais. Agora no momento estou terminando o CD (Música, Graça de Deus) que tem músicas religiosas, as "Ave Maria" de (Charles) Gounod e de (Franz) Schubert, tem a "Serenata" de Schubert, tem a "Ária da Quarta Corda" de (Johann Sebastian) Bach, que é uma coisa difícil - em flauta, então! Aliás, nunca foi gravado em flauta. E eu estou com um tecladista fabuloso, o Luís Américo, ele é jovem e está fazendo vários instrumentos com o teclado, calçando os arranjos com muita propriedade, e dentro desses arranjos também vão "Greensleeves", duas composições minhas, "Siciliano" e uma valsa-canção, vão três músicas de (Frédéric) Chopin: "Tristesse", a "Valsa em Si Menor" e a "Valsa do Adeus". Três músicas que sempre gostei muito e agora aproveitei e incluí. E além dessas mais umas duas ou três, também muito conhecidas, como o "Noturno" de Chopin, por exemplo. Usei um pouco de percussão, só percussão mais leve em algumas músicas, na "Ave Maria" tem um sino mesmo, um sino de igreja tocando, então tá muito bonito, tem violino, tem harpa, tem oboé, trompa, isso dá uma mini-sinfônica, bem leve, bem agradável. Tenho um programa de rádio. Só pega no estado do Rio e Minas, é na Rádio MEC, em FM e AM. Passa duas vezes por semana, às terças-feiras em AM, às 17h, e aos sábados em FM às 11 da manhã. Tá com audiência excelente, muito boa, isso comentado pela própria diretoria da rádio. Então é um programa que eu faço com convidados e apresento os CDs daqueles músicos que não têm como divulgar o seu trabalho, que as rádios comerciais só tocam música cantada. Não dão a mínima importância à música instrumental. Então esse programa cresceu em audiência porque quem ouviu já comenta com outro, o outro com outro, vai de boca a boca... Motoristas de praça então, tem 80% dos motoristas do Rio e de Minas ouvindo o meu programa. E eu peço o nome deles, eles mandam e-mail, (com) nome da esposa, até do papagaio, eu falo o nome de todo mundo: "O nosso ouvinte assíduo, muito obrigado e tal", e brincamos com os ouvintes. Dá impressão que estamos na casa do ouvinte fazendo o programa.
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